Discurso na Tomada de Posse da Senhora Presidente do TCA Sul
Ex.ma Senhora Desembargadora Presidente do TCA Sul
Ex.ma Senhora Desembargadora Vice-Presidente do TCA Sul
Excelências
Distintos Convidados
Minhas senhoras e meus senhores
É com enorme júbilo que nos reunimos hoje aqui para a tomada de posse da Senhora Desembargadora Tânia Meireles da Cunha como Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, a quem, publicamente, endereço felicitações pela eleição, assim como os mais sinceros votos de felicidades para o mandato.
A eleição da Senhora Desembargadora como Presidente deste Tribunal não é nem pode ser uma surpresa para quem conhece o seu percurso profissional nesta jurisdição e a sua essência humana.
O primeiro // revelador de uma personalidade empenhada, laboriosa, competente, inconformada e resiliente perante os mais exigentes desafios.
A segunda // caracterizada pela vivacidade no olhar, o sorriso pronto e a energia das “inteligências múltiplas” (Howard Gardner), adquirida por quem enfrenta o dia-a-dia com a força do óptimo possível, mesmo perante as adversidades.
Esta conjugação de elementos significa que… Temos Presidente!
Permitam-me ainda que aproveite este contexto de celebração para deixar também uma palavra de saudação amiga à Senhora Vice-Presidente eleita, a Senhora Desembargadora Ana Carla Teles Duarte Palma, que também agora tomou posse.
A ela endereço igualmente votos de muito sucesso para o exercício do mandato.
Estes votos de sucesso para o exercício dos mandatos que agora se iniciam e que publicamente expresso, são sinceros e aspiracionais // e não meramente circunstanciais, pois sou consciente das dificuldades que ambas terão de superar, mas sobretudo a Senhora Presidente Tânia Meireles da Cunha. Os tempos que se avizinham prometem ser exigentes em muitos sentidos e as tarefas de coordenação e administração do sistema de justiça não são imunes a esse contexto. Pelo contrário, estão hoje hipervigiadas, pluri-responsabilizadas e ameaçadas por individualismos egocêntricos que caracterizam a liquidez dos valores.
Por isso, creio ser útil aproveitar o enquadramento funcional desta cerimónia para revisitar // e relembrar // conceitos respeitantes à administração do sistema de justiça, destacando as respectivas diferenças substanciais face à função judicativa tout court.
Diferenças estas que nem sempre são marcadas e percepcionadas com as fronteiras devidas.
Vejamos.
Tenho vindo publicamente a vincar a necessidade de incrementar a produtividade da jurisdição como elemento essencial de legitimação pública deste poder estadual.
Faço-o // não por capricho ou obstinação pessoal, mas por dever de ofício. Para Vos deixar muito claro que este é um requisito essencial, precedente e condicional para qualquer exigência que em nome colectivo possamos querer fazer quanto à alocação de mais meios públicos a este serviço.
E, por isso, a este objectivo crucial me hei-de referir tantas vezes quantas as necessárias para que ele seja interiorizado por todos.
Não ignoro que a produtividade da jurisdição não se confunde nem pode confundir com a produtividade na jurisdição.
A primeira – a produtividade da jurisdição – é uma produtividade causal e, por isso, ela é da responsabilidade exclusiva dos juízes, pois são os seus actos (despachos, diligências, sentenças, acórdãos) que constituem os outputs em que se mede a produção deste serviço.
Já a segunda – produtividade na jurisdição – embora esteja umbilicalmente ligada à primeira, autonomiza-se dela, na medida em que constitui uma produtividade funcional, ou seja, uma análise de resultados centrada nos factores organizativos que facilitam ou obstaculizam a realização dos outputs. E, nesta medida, ela é uma responsabilidade de quem se encontra mandatado, à luz do quadro legal de organização e funcionamento do serviço de justiça, para promover e agilizar a realização dos outputs.
E são diversos os poderes funcionais legalmente estabelecidos no ETAF com o objectivo de promover a produtividade funcional.
Inscrevem-se neste âmbito, a título meramente ilustrativo, as competências do Presidente do STA e dos Presidentes dos TCA’s de “planear e organizar os recursos humanos do Tribunal, assegurando uma equitativa distribuição de processos pelos juízes e o acompanhamento do seu trabalho”, assim como as competências dos Presidentes dos TAF’s de “implementar métodos de trabalho e objetivos mensuráveis para cada unidade orgânica” ou “de reafetação dos juízes, tendo em vista uma distribuição racional e eficiente do serviço”.
São competências, poderes-deveres legais, que funcionalmente têm de ser exercidos para assegurar a produtividade na jurisdição.
E todas estas dimensões funcionais, que a lei integra no leque de competências dos Presidentes dos Tribunais, não podem confundir-se com restrições ou ingerências na independência estatutária dos juízes e na sua imparcialidade para julgar.
A independência estatutária do juiz é uma garantia material do sistema e dos que a ele acedem… e não é um direito fundamental pessoal ou social dos respectivos atores funcionais, nem um poder de auto-organização ou auto-regulação pessoal.
A independência que se assegura através desta garantia funcional é a do poder judicial em si. E, para isso, assegura-se uma liberdade na decisão judicial como garantia da tutela jurisdicional efectiva de quem acede ou se submete ao poder judicial exercido através do sistema de justiça.
Mesmo a dimensão interna da independência estatutária do juiz circunscreve-se:
i) à liberdade de interpretar e aplicar a lei (respeitando a jurisprudência dos tribunais superiores por razões de segurança jurídica e protecção da confiança…. que é coisa diferente de subordinação a indicações ou instruções concretas daqueles tribunais);
ii) à imparcialidade face a interesses pessoais e externos;
iii) à inamovibilidade arbitrária;
e
iv) à liberdade de conduzir individualmente os processos (que é coisa diferente da liberdade de gerir o acervo processual).
A jurisprudência constitucional e europeia, assim como as recomendações do Conselho da Europa que cuidam do tema da independência do juiz buscam assegurar que a sua efectividade se traduz:
i) na proibição de ingerência de outros poderes soberanos na formação e no conteúdo da decisão;
ii) na proibição de qualquer forma de responsabilização do juiz pelo conteúdo da decisão que afecte a sua imparcialidade (liberdade decisória), nos limites do regime de responsabilidade pelo erro judiciário;
iii) na proibição de fazer depender a remuneração do teor das decisões;
iv) na proibição de restringir a liberdade de expressão dos juízes, nos limites constitucionais do exercício deste direito.
Nada disto contende com a organização administrativa do trabalho judicativo pelas entidades legalmente competentes para o efeito.
A parametrização do formato da decisão judicial, a calendarização das sessões, a fixação de critérios de prioridade processual, ou a ratio de processos a decidir por cada juiz são aspectos totalmente alheios à independência do poder judicial, precisamente porque não são aptos a afectar a imparcialidade do juízo judicativo.
O juiz tem independência estatutária que garante a condição de imparcialidade para decidir, mas não goza de autonomia estatutária oponível às regras de administração da justiça, sejam regras legais, sejam normas regulamentares.
Não há, nem constitucional, nem legal, nem estatutariamente qualquer autonomia administrativa dos juízes.
A autonomia administrativa que neste domínio existe é a que o ETAF atribui ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais para a gestão do funcionamento da jurisdição.
E vale a pena lembrar ainda os três tópicos que sintetizam o teor da Recomendação CM/Rec(2010)12 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre a independência, a eficiência e as responsabilidades dos juízes:
Primeiro: a independência do juiz é uma garantia de quem recorre ou é chamado a submeter-se ao poder judicial, é uma condição estatutária funcional de que quem julga se encontra em condições de imparcialidade face à influência externa, seja ela política, económica ou outra;
Segundo: a eficiência é a garantia de que o sistema administra a justiça de forma célere e eficaz e é, por isso, uma responsabilidade partilhada do legislador e das entidades a quem este atribui competência para administrar o sistema de justiça;
Terceiro: a irresponsabilidade é mera condição funcional da independência, e não neutraliza nem afasta o dever de responder perante a sociedade em relação ao desempenho funcional
A estas dimensões técnico-jurídicas importa agora acrescentar as dimensões éticas e deontológicas que lhe estão subjacentes, o que permite concluir essencialmente o seguinte:
Primeiro, que não existe um espaço de auto-administração ou auto-regulação administrativa do juiz. O poder judicial não é fruto de uma soma de autonomias atomizadas e auto-reguladas. Pelo contrário, existe o dever deontológico de colaborar activamente com as directrizes orgânico-funcionais em que é exercida a função judicativa para assegurar eficiência do serviço. E este dever do juiz tem como correspectivo o direito dos utentes do serviço de justiça à garantia da tutela jurisdicional efectiva.
Segundo, que o desrespeito ou incumprimento das directrizes administrativas põe em causa o regular funcionamento do serviço e a sua eficiência, podendo até consubstanciar um elemento de culpa no apuramento da responsabilidade objectiva pelo funcionamento anormal deste serviço estadual.
Terceiro, que a complexidade dos processos, à luz dos parâmetros da jurisprudência do TJUE em matéria de responsabilidade do Estado, é apreciada em função de elementos objectivos e não subjectivos. Isto significa que não é o grau de dificuldade da causa, mas sim o volume de diligências necessárias à decisão que sustenta a medida do tempo para a decisão processual.
Em contraponto, o juiz não pode alegar a dificuldade técnica como um elemento para o atraso na prolação das decisões. Pelo contrário, é unânime e internacionalmente reconhecida a existência de um dever deontológico do juiz de actualizar permanente e regularmente a sua capacitação.
Nesta medida, a invocação de dificuldades no exercício da função judicativa pode corresponder, a final, a um incumprimento daquele dever deontológico de auto-capacitação.
Este excurso por alguns conceitos, princípios e acquis da judicatura são essenciais no contexto da desconstrução presente. E todos devem reler os documentos fundantes do poder judicial no Estado de Direito vigente.
É tempo de concluir.
Retorno ao ponto inicial desta intervenção: os tempos são exigentes e avizinham-se ainda mais exigentes.
São tempos de dever ético, de dever funcional, de exigência institucional.
Só desta forma conseguiremos dar sentido útil ao serviço de justiça como referência e garante do Estado de Direito.
Aqueles que hoje tomam posse em funções de gestão e administração deste serviço estão comprometidos com esses objectivos essenciais de serviço público… de serviço ao Outro.
E esperam… e esperamos todos… que estas dimensões éticas também aflorem naqueles que se comprometeram com este serviço e diariamente se apresentam perante a sociedade como titulares desta nobre função estadual.